“Eu tenho um sonho: esculpir na montanha de desespero uma pedra de esperança”. 60 anos do discurso de Martin Luther King Jr.

"Eu tenho um sonho", disse Martin Luther King há 60 anos. "E vocês, garotas e garotos: qual é o seu sonho para o mundo de hoje e de amanhã?", pergunta o Papa Francisco

(Arte: Stephany Oreli | IHU)

Por: Patricia Fachin | 04 Abril 2023

"Eu tenho um sonho de que um dia esta nação se erguerá e viverá o verdadeiro significado da sua crença: 'Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais'.

Eu tenho um sonho de que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-donos de escravos poderão se sentar juntos à mesa da fraternidade. Eu tenho um sonho de que um dia até mesmo o estado do Mississippi, um estado sufocado pelo calor da injustiça, sufocado pelo calor da opressão, será transformado em um oásis de liberdade e justiça. Eu tenho um sonho de que meus quatro filhos pequenos um dia viverão em um país onde não serão julgados pela cor de sua pele, e sim pelo conteúdo de seu caráter. Hoje, eu tenho um sonho.

Eu tenho um sonho de que um dia, no Alabama, com seus racistas cruéis, com seu governador cuspindo palavras de interposição e anulação - um dia, bem lá no Alabama, meninos negros e meninas negras poderão dar as mãos a meninos e meninas brancas como irmãos e irmãs. Hoje, eu tenho um sonho.

Eu tenho um sonho de que um dia todos os vales serão levantados, todos os montes e colinas serão aplanados; os terrenos acidentados se tornarão planos; as escarpas serão niveladas. A glória do Senhor será revelada e, juntos, todos a verão.

Essa é a nossa esperança.

Essa é a fé com a qual voltarei para o Sul. Com essa fé, poderemos esculpir na montanha de desespero uma pedra de esperança. Com essa fé, poderemos transformar as discórdias dissonantes do nosso país em uma bela sinfonia de fraternidade. Com essa fé, poderemos trabalhar juntos, rezar juntos, lutar juntos, ser presos juntos, defender a liberdade juntos, sabemos que um dia seremos livres.

Esse será o dia, esse será o dia em que todos os filhos de Deus poderão cantar um novo significado:

'Meu país é teu,
Doce terra da liberdade,
De ti eu canto: Terra onde meus pais morreram,
Terra do orgulho dos peregrinos,
Que, de cada encosta, a liberdade ressoe!'"

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Numa época em que "a política se transformou em um espetáculo onde só há ideologias, não há ideias", como observou o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, professor de Sociologia do Direito na Universidade Yale, em entrevista concedida a Oihane Larretxea, do site espanhol Naiz, em fevereiro deste ano (e reproduzida na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU), o discurso proferido por Martin Luther King Jr. (1929-1968) em 28 de agosto de 1963, ao liderar a Marcha sobre Washington, 60 anos atrás, assume um caráter de vanguarda ao desejar que "os filhos de ex-escravos e os filhos de ex-donos de escravos" possam "se sentar juntos à mesa da fraternidade" e negros e brancos possam "dar as mãos como irmãos". O apelo e o desejo de Luther King são radicalmente diferentes dos pronunciados na cena política nacional e internacional, em que cada lado do espectro político se sustenta pelo movimento contrário: a manutenção da divisão, em lugar da real defesa pela reconciliação.

Pastor da Igreja Batista da Dexter Avenue, em Montgomery, Alabama, EUA, e fundador da Conferência da Liderança Cristã do Sul, em 1957, Luther King ficou mundialmente conhecido pelo discurso "Eu tenho um sonho", no qual reivindicou a urgente e necessária união e coexistência fraterna entre negros e brancos para a vivência do presente e a construção do futuro. Em 04-04-1968, Martin Luther King foi assassinado em Memphis, no estado do Tennessee.

Martin Luther King Jr. (Foto: Reprodução)

Não apenas no país de Luther King, mas no mundo todo a violência, o ódio e o espírito de separação ainda fomentam o racismo, a divisão étnica e a guerra em vez da paz. Exatamente um ano atrás, em seu retorno de Malta, arquipélago situado na região central do Mediterrâneo, entre a Sicília e a costa do Norte da África, o Papa Francisco advertiu sobre esta disposição que parece animar a humanidade:

“Nós não aprendemos, estamos apaixonados pelas guerras e pelo espírito de Caim.”

Na entrevista concedida durante o voo de volta a Roma, o pontífice foi enfático:

"A guerra é sempre uma crueldade, uma coisa desumana, que vai contra o espírito humano; eu não digo cristão, [eu digo] humano. É o espírito de Caim, o espírito 'Caimista'. (...) Nós não podemos pensar outro esquema, não estamos mais acostumados a pensar no esquema da paz. Houve grandes personagens, como Gandhi e outros que menciono no final da encíclica 'Fratelli tutti', que apostaram no esquema da paz. Mas nós fomos teimosos como humanidade. Somos apaixonados pelas guerras, pelo espírito de Caim. Não por acaso, no início da Bíblia há este problema: o espírito 'caimista' de matar ao invés do espírito da paz."

No artigo intitulado "Martin Luther King - um pastor batista, coerente discípulo de Cristo e de Gandhi", o jurista e professor emérito da Universidade de Bologna, Tiziano Bonazzi, destacou outro discurso do pastor batista, "Eu estava no topo da montanha", proferido em 03-04-1968, um dia antes de seu assassinato, em Memphis. Segundo ele, a prática da não violência era, para o ativista, "um sistema de vida, uma atitude ética, que o levou a nunca responder às agressões repetidas que sofria; mas, como para Gandhi, era um instrumento de luta, um instrumento dos fortes, para obter resultados. Foi o método que seguiu em todos os eventos que organizou, como as marchas de março de 1965, de Selma a Montgomery, pelo direito de voto aos negros, em que a violência policial contra milhares de manifestantes pacíficos provocou um tal protesto que permitiu a aprovação, no mesmo ano, do Voting Rights Act (Lei dos Direitos de Voto), lei que acabou com a discriminação racial que impedia os negros de votarem nas eleições".

O discurso e a prática de vida de Martin Luther King estavam diretamente relacionados à sua vida espiritual e à proclamação da Palavra de Deus. Tanto é assim que suas pregações e discursos tematizavam o desespero e a esperança à luz do mistério de Cristo, tal como o fez em junho de 1966, em sua pregação no púlpito de Atlanta, ao refletir sobre a relação entre a Sexta-feira Santa e a Páscoa:

"A Igreja deve dizer aos homens que a Sexta-feira Santa é um fato da vida tanto quanto a Páscoa; o fracasso é um fato da vida tanto quanto o sucesso; a decepção é um fato da vida tanto quanto a realização."

De acordo com o pastor batista Michael Eric Dyson, autor do livro "What Truth Sounds Like: Robert F. Kennedy, James Baldwin, and Our Unfinished Conversation about Race in America (2018) [Como a verdade se parece: Robert F. Kennedy, James Baldwin e nosso diálogo não concluído sobre raça nos EUA], com suas palavras, Luther King diz que "Deus não nos prometeu que evitaríamos 'provações e tribulações', mas que 'para quem tem fé em Deus, esse Deus tem o poder de dar uma espécie de equilíbrio interior através de sua dor'".

Em reportagem publicada em 2020, a revista America, dos jesuítas dos EUA, sublinhou as raízes cristãs da "política radical" de Martin Luther King. "No momento em que celebramos a vida e o legado de Martin Luther King Jr., vale lembrar que, apesar da natureza intensamente política de seu ministério e ativismo, o Dr. King foi mais profeta do que um político. Ministro e pregador, o seu ativismo pelos direitos civis fundava-se em uma compreensão profunda das noções bíblicas de justiça e da promessa irrevogável feito por Deus ao povo do Êxodo. Mas, como aconteceu já durante sua vida e no meio-século após sua morte, parece que sempre buscamos associar um rótulo político conveniente a ele", afirma o texto.

Conforme mostra a reportagem, "os debates a respeito do legado de King ignoram o ponto mais importante: ele não foi um revolucionário marxista, nem um político moderado, mas um cristão radical. O seu compromisso com a causa dos direitos civis (e o seu ulterior sacrifício por esta causa) era evangélico: ele acreditava que todo ser humano, não importa a cor da sua pele, nasceu à imagem e semelhança de Deus – algo que as grandes religiões monoteístas ensinam há 4 mil anos".

Do mesmo modo, seu compromisso com a não violência era justificado na vivência do Evangelho: "Tampouco o seu compromisso com a não violência era um movimento tático para alcançar objetivos políticos. Era, isto sim, uma crença profundamente arraigada nascida daquelas mesmas convicções religiosas. Honramos melhor a sua memória e o seu sacrifício quando vemos o grande homem pela alma profética que foi – não como alguém a ser cooptado para os nossos próprios objetivos políticos".

Ao recordar os 50 anos da morte de Martin Luther King, o editorial da revista America, refletindo sobre as injustiças sociais ainda presentes nos EUA, pergunta:

"Será que este profeta vai ser ouvido na morte como não foi ouvido na vida? Será que o mártir vai alcançar pelo sangue o que não conseguiu pelas palavras?"

E explicou o significado do termo mártir, que tem sido atribuído a Luther King desde o seu assassinato na luta pelos direitos civis:

"O significado original da palavra grega mártir é 'testemunha', tomada no sentido cristão para fazer referência a alguém que testemunha a fé com o próprio sangue. A testemunha de Luther King não era politicamente partidária ou secular, mas profundamente inspirada por sua convicção de que a busca bíblica por justiça era tão pertinente na época atual quanto na dos antigos profetas."

Em comentário publicado no National Catholic Reporter, Tony Magliano, ativista sindical pela paz e justiça social, respondeu às questões postuladas pela America, enfatizando o espírito que anima aqueles que, inspirado também pelas ações e discursos de Martin Luther King, dão continuidade à luta por transformações, ainda que num contexto adverso:

"Quando um discípulo de Jesus leva seu chamado batismal profético a sério, suas palavras e ações vivem por muito tempo depois que a pessoa vai embora deste mundo."

Martin Luther King Jr. (Foto: Reprodução)

No contexto da indignação pela morte de George Floyd, no início desta década, nos EUA, diversos ativistas sociais e a comunidade civil e religiosa realizaram manifestações pela igualdade e pelo fim da discriminação racial. Neste mesmo espírito, em 2022, o Papa Francisco dirigiu um convite à humanidade:

"Que cada um de vocês possa se tornar 'poeta da paz'!" 

 

 

No Encontro para a educação à paz e ao cuidado, ele dirigiu-se, particularmente, aos jovens:

"Um modelo de cuidado por excelência é aquele samaritano do Evangelho, que socorreu um desconhecido que encontrou ferido no caminho. O samaritano não sabia se aquele infeliz era uma boa pessoa ou um patife, se era rico ou pobre, instruído ou ignorante, judeu, samaritano como ele ou estrangeiro; não sabia se 'tinha provocado' aquele infortúnio ou não. O Evangelho diz: 'Ele o viu e teve compaixão' (Lc 10,33). Ele o viu e teve compaixão. Outros, antes dele, também viram o homem, mas seguiram por seu caminho. O samaritano não se fez tantas perguntas, seguiu o movimento da compaixão."

Na ocasião, o pontífice recordou figuras eminentes que contribuíram, com suas próprias vidas, para a promoção do cuidado, da paz e da justiça social, como o Papa João XIII e também Martin Luther King.

"Hoje gostaria de recordar duas figuras de testemunhas. A primeira é a de São João XXIII. Foi chamado de 'Papa Bom', e também de 'Papa da Paz', porque naqueles difíceis inícios da década de 1960 marcados por fortes tensões - a construção do Muro de Berlim, a crise de Cuba, a Guerra Fria e a ameaça nuclear - publicou a famosa e profética encíclica Pacem in terris. No ano que vem [2023] completará 60 anos, e é muito atual! O Papa João dirigiu-se a todos os homens de boa vontade, pedindo a solução pacífica de todas as guerras através do diálogo e do desarmamento. Foi um apelo que recebeu grande atenção no mundo, muito além da comunidade católica, porque havia captado uma necessidade de toda a humanidade, que ainda é a mesma de hoje. É por isso que os convido a ler e estudar a Pacem in terris, e a seguir esse caminho para defender e difundir a paz."

 

E continuou:

"Poucos meses depois da publicação daquela Encíclica, outro profeta do nosso tempo, Martin Luther King, Prêmio Nobel da Paz em 1964, proferiu o histórico discurso no qual disse: 'Eu tenho um sonho'. Em um contexto estadunidense fortemente marcado pelas discriminações raciais, ele havia feito todos sonharem com a ideia de um mundo de justiça, liberdade e igualdade. Ele disse: 'Eu tenho um sonho: que meus quatro filhos pequenos um dia vivam em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pela dignidade de sua pessoa'."

 

 

Como não poderia ser diferente, Francisco, atualizando os discursos de João XXIII e Martin Luther King, dirigiu uma questão aos jovens e, igualmente, à toda humanidade:

"E vocês, garotas e garotos: qual é o seu sonho para o mundo de hoje e de amanhã?"

E acrescentou:

"Encorajo vocês a sonhar grande, como João XXIII e Martin Luther King. (...) Todos unidos pelo sonho da fraternidade baseada na fé no Deus que é Paz, o Pai de Jesus Cristo e nosso Pai."

 

 

 

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