29 Abril 2024
Polícia pede prisão preventiva pela terceira vez para empresário de 24 anos que matou motorista com carro esportivo ao bater a mais de 150 quilômetros por hora em São Paulo.
A reportagem é de Naiara Galarraga Gortázar, publicada por El País, 26-04-2024.
Foi um ataque brutal numa noite de fim de semana numa daquelas avenidas de múltiplas faixas que atravessam São Paulo, a capital econômica do Brasil. Um Porsche 911 Carrera GTS em alta velocidade bateu brutalmente em um humilde Renault Sandero. O motorista do carro, Ornaldo da Silva Viana, de 52 anos, que ganhava a vida dirigindo, sofreu parada cardiorrespiratória e faleceu pouco depois no hospital. O outro motorista era Fernando Sastre de Andrade Filho, empresário de 24 anos que havia saído para festa no carro esporte do pai e voltava para casa com um amigo. A polêmica sobre o evento, ocorrido no dia 31 de março, continua viva porque oferece um bom retrato do privilégio desfrutado pelos ricos (e brancos) em um país tão desigual como o Brasil. A polícia solicitou pela terceira vez que Sastre, acusado de homicídio doloso e fuga, seja colocado em prisão preventiva, segundo a imprensa brasileira.
Num país onde às vezes se veem homens mestiços ou negros encostados na parede, no meio da rua, sendo revistados ou vigiados por policiais, o privilégio dos brancos (e ricos) ficou evidente desde os primeiros momentos após o acidente, depois das duas horas da manhã. A mãe do motorista do Porsche compareceu ao local do acidente, viu o filho e convenceu os dois policiais militares presentes de que precisava levá-lo ao hospital para fazer um raio-X. Assim, contrariando qualquer protocolo nessas circunstâncias, a polícia permitiu que o principal suspeito saísse do local do crime sem se submeter ao teste do bafômetro. Embora com alguma relutância, como mostram as gravações das câmeras corporais, a polícia confiou na palavra daquela mulher.
Quando os agentes apareceram no hospital para onde Sastre Filho teria sido levado pela mãe, surpresa, nem ele nem ela estavam lá. Eles também foram ao apartamento dele. Demorou quase dois dias para o acusado comparecer a uma delegacia. Aos poucos, vieram à tona outros detalhes que alimentaram a indignação popular em um país onde os super-ricos são uma raça distinta e onde 1,5 milhão de pessoas ganham a vida ou completam seus salários dirigindo para clientes de aplicativos. E tudo agravado pela atitude da polícia na noite do acontecimento.
Acontece que o jovem empresário da construção civil que destruiu o carro azul brilhante de seu pai havia perdido sua carteira de motorista por diversas infrações, incluindo multas por excesso de velocidade. Quando ele atropelou o motorista naquela manhã, ele só havia recuperado a carteira de motorista 12 dias antes. O navegador do Porsche, amigo de Sastre Filho, ficou gravemente ferido: quatro costelas quebradas e o baço teve que ser retirado. Quando se recuperou o suficiente para testemunhar à polícia, disse aos investigadores que o motorista do carro esportivo havia bebido naquela noite. Ambos passaram juntos, e com as respetivas parceiras, uma noite que terminou com alguns jogos de pôquer e uma briga entre o empresário de vinte e poucos anos e a namorada, que não o considerava apto para assumir o volante.
Viana, que naquela noite trabalhava como motorista, teve o azar de cruzar seu caminho. Esse era o seu trabalho e ele estava orgulhoso disso. Pai de três filhos, era casado e religioso, alguém que simpatizava facilmente com a maioria dos brasileiros que saem todas as manhãs para trabalhar para ganhar, com enorme esforço, em dias muito longos, o sustento para sustentar a família. “Olá família, vamos à luta. Está tudo em ordem, vamos ver o que o bom Deus nos manda hoje, ele sempre manda boas corridas. Excelente trabalho. “Deus vai abençoar nosso trabalho esta noite”, diz Viana à família em um vídeo que divulgaram após sua morte.
Para piorar a situação, duas câmeras de vigilância da rua no local não funcionavam naquela manhã. Segundo a polícia, eles estavam em processo de atualização tecnológica. Embora o acusado de homicídio tenha declarado à polícia que estava “um pouco acima” dos 50 quilômetros por hora permitidos na avenida, a investigação policial determinou que Sastre pisou muito no acelerador. O Porsche voava a mais de 150 quilômetros por hora. A colisão foi brutalmente violenta. A traseira do Renault Sandero ficou totalmente comprimida. Diante da fuga e das circunstâncias do acidente, a polícia solicitou pela terceira vez a prisão provisória de Sastre Filho, a apreensão de seu passaporte e a suspensão de sua carteira de motorista. O caso está sob sigilo sumário, mas os vazamentos são constantes.
Na segunda vez que a polícia solicitou sua entrada na prisão, o juiz permitiu que ele evitasse a prisão com uma fiança de meio milhão de reais (97 mil dólares). Este caso lembra outro menino rico. O empresário Eike Batista era o homem da vez, aquele que personificou o sucesso do Brasil quando, em 2012, seu filho primogênito, chamado Thor, atropelou e matou um ciclista em uma estrada de montanha no Rio de Janeiro. Caiu em desgraça com a Lava Jato. Quando atropelou um caminhoneiro que andava de bicicleta, Thor tinha 22 anos. Alguns meses antes, a polícia havia confiscado uma Ferrari por dirigir sem placa dianteira; ele era conhecido por passar a noite no Rio. Condenado em primeira instância, foi posteriormente absolvido e sua família indenizou a família da vítima. Quatro meses depois, ele estava de volta ao volante.
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Um Porsche e um ataque mortal após uma noite de pôquer: um retrato do privilégio dos ricos no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU